sábado, 23 de outubro de 2010

Marechal de asfalto

Maltratada, desnivelada, pisada e esburacada. A rua que leva e traz teria do que reclamar. Mas continua lá, levando e trazendo em silêncio. Aceitando com gentileza e servidão quem passa por cima e a trata com desprezo. Quem nem lembra que ela esta lá. A rua leva e traz quem não a conhece. Mas não faz mal. Lá no fundo, ela sabe que todos sabem da sua importância. É a segunda maior da cidade, afinal. São mais de 12 quilômetros de asfalto, buraco e um pouco de calçada.

Alguém talvez pergunte a razão de tanta submissão. “Ora, vamos lá, segunda maior? Tenha ambição!” dirá o inconformado. Dirá, inclusive, para ela usar a fama de rua mais perigosa da capital para assustar quem a quer assim, em segundo lugar. Mas deitada lá, no coração da cidade, ela responde em silêncio: “É o meu destino...”

Não por que os homens que a construíram assim quiseram. Seu destino começou a ser traçado muito longe dali. Em Maceió, no saudoso ano de 1839, nasceu alguém fadado a ser grande. Mas não a ser o maior. Floriano Vieira Peixoto nasceu para ser o segundo presidente do Brasil. Nasceu para ser o Marechal de Ferro. Apelido imponente. Másculo como o bigode que trazia sempre no rosto. E ai de quem o chamasse, mesmo nas horas mais íntimas, de “Flor”.

Quis a história que outro Marechal fosse o primeiro. Não satisfeita com o mal que isso causou a Floriano, quis também essa velha rabugenta chamada história que o primeiro fosse Manuel Deodoro da Fonseca, desafeto de Floriano. Quis a história que assim fosse. Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do Brasil. Deodoro da Fonseca, proclamador da república. Floriano Peixoto, o vice. O segundo.

A rua sabe disso tudo e aceita seu destino. É assim que as coisas são. Vida de rua é difícil. Ser a segunda maior? Sem problema. A maior é a Juscelino Kubistchek, grande presidente. É merecido. Maus tratos dos carros e do tempo? Paciência. Ninguém mandou ser rua. Mas tem uma coisa que a irrita. Tem apenas uma coisa que a tira do sério e faz seu asfalto ferver.

Lá na frente, quando ela está quase no seu ápice, a outra está lá para cruzar o seu caminho. Marechal Deodoro da Fonseca, em carne e asfalto. No centro da cidade. Pra lembrar a todos quem foi mais importante. Durante todo o dia, ela não vê a hora do sinaleiro abrir pra seguir o seu caminho. Quando está ali, cruzando com a outra marechal, quase sai andando sozinha. Maldito destino.

Mas tem uma coisa que a rua não sabe. Quando os marechais se encontram, onde quer que estejam, e Deodoro começa a importunar Floriano, o Marechal de Ferro ajeita o bigode, se arruma dentro da farda e diz, com o queixo erguido, do alto da sua masculinidade: “Minha rua é maior que a sua”. Deodoro sempre fica sem resposta.

Um comentário:

Zeca Monteiro disse...

Nossa cara, muito bom!
É muito gostoso ler um texto curitibano assim.

Haja criatividade, hein?