domingo, 21 de fevereiro de 2010

Destino por acaso

O destino

Você tá num lugar estranho. Imagine uma música que você não gosta tocando bem alto, pessoas que você não conhece direito conversando, bêbados bebendo, essas coisas. Você não queria estar ali. Teu melhor amigo te arrastou pra essa furada. "Numa dessas você até arranja uma gata e esquece a Fernandinha", ele disse. Você sabia que não ia arranjar gata nenhuma, e muito menos esquecer a Fernandinha. Ele também sabia, mas o infeliz precisava da tua carona e esse foi o melhor argumento que ele conseguiu. Você, entediado, foi. Grande erro.

Lá pelas tantas você vê a Fernandinha se atracando com um babaca qualquer. Ela parece ter superado bem o término do noivado de vocês, uma semana atrás. Quando ela solta do babaca, você percebe que é o Azevedo, o cara mais babaca da tua empresa. Talvez o cara mais babaca de todas as empresas. Se tivesse um concurso pra eleger o cara mais babaca do universo, o Azevedo com certeza estaria no páreo.

Você sente o estômago dar uma cambalhota e não entende por que razão ele parece estar tão contente. Uma fisgada agora. O teu cérebro estala e você lembra do dia que você apresentou o babac.., quer dizer, o Azevedo pra Fernandinha. Grande erro. Você vai até o banheiro, olha pro vaso, ele olha pra você. Em menos de 10 segundos você tá abraçando ele, contando tuas mágoas entre uma gorfada e outra.

O acaso

Você tá em um lugar estranhamente acolhedor. Teu melhor amigo tá do teu lado. A música é boa, você tá bebendo algo parecido com desinfetante, mas teu paladar não se importa mais. Teu amigo reclama, você reclama, mas no fundo estão só puxando papo. Você terminou um namoro estranho uns dias atrás e não tá a fim de conhecer ninguém agora. Mas alguém entra na sala. Alguém que você quer conhecer.

Ela senta no mesmo sofá que vocês. É irmã do dono da casa. Você não conhece direito o dono da casa, mas adoraria poder chamar ele de cunhadão. Você é tímido. Ela te viu e ficou te olhando mais do que o normal. Você já bebeu uns 3 copos de desinfetante. Álcool 1 x Timidez 0. Você vai falar com ela.

Contrariando todas as leis da lógica e as leis dos relacionamentos humanos, ela é bonita, gostosa e gente boa. A conversa flui naturalmente. Você nem percebe o tempo passando, as pessoas indo embora, bêbados deitados no tapete da outra sala, essas coisas que acontecem nas festas.

Na hora que o teu amigo te chama pra ir embora, ela diz pra você ficar. Estavam só ela e o irmão em casa, e o irmão dela, o dono da casa desconhecido, parecia estar mais preocupado com as duas moças que subiam a escada com ele. Você dá a chave do carro pro teu amigo, pede pra ele avisar teus pais que você tá bem e fica.

No dia seguinte as marteladas internas na tua cabeça te acordam. Você olha pro lado e ela ta ali, dormindo, com o lençol cobrindo apenas metade daquele corpo. Que corpo. Você olha pra cima e agradece a Deus por aquele corpo não ter ganho massa durante a noite. Também por aquele rosto continuar bonito, simétrico e com todos os opcionais de fábrica. No banheiro, as bebidas à base de desinfetante decidem abandonar o navio. Você se ajoelha e abraça o vaso, como se fosse um amigo que há tempos não via.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Uma bala

O barulho a fez abrir os olhos lentamente. Ainda estava naquela transição entre sonho e realidade quando ouviu as batidas na janela do quarto novamente. Agora mais fortes.

Toc, toc!

Dessa vez levantou da cama num pulo. Ficou ali sentada. Paralisada. Morava naquela casa desde que se conhecia por gente. Apesar do bairro tido como violento, nunca tinha sido assaltada ou nada assim. A casa nunca havia sofrido nenhum tipo de invasão, e mesmo que tivesse, a responsabilidade seria de seus pais. Em último caso, do seu irmão mais velho. Nesse dia, com a família toda viajando, a responsabilidade era sua.

TOC, TOC!

Imaginou que dessa vez a janela quebraria. Não quebrou. Sem pensar, resolveu falar.

-Q-quem ta aí?

A resposta veio envolta em uma voz cavernosa, mas nitidamente forçada. Parecia uma criança tentando parecer homem.

-Moça, é o seguinte. Eu tô com uma arma apontada aí pra dentro. Eu quero todo o dinheiro que você tem aí, ta me entendendo? Tudinho! Senão eu mando bala.

Nunca tinha sentido tanto medo na vida. Continuava paralisada, sentada no meio da cama. A janela era bem no meio da parede do quarto. Qualquer tiro vindo dali a acertaria. Quando resolveu esboçar um movimento de fuga, a cama rangeu.

-Moça, eu não to brincando! Eu sei que você ta sozinha aí! Se você se mexer sem eu mandar, eu atiro!

Pregada na cama, ela tentava pensar, mas o medo não deixava. Perguntou o que ele queria que ela fizesse.

-Eu sei que teu dinheiro ta aí na tua bolsa, do lado da cama. Pega tudo que você tiver e passa por essa fresta aqui na janela, mas sem olhar pra fora! Se você olhar pra mim a faxineira vai te amaldiçoar por ter que catar teus miolos pelo quarto!

Aquela voz forçada, quase infantil, o temor do bandido pela possibilidade que ela olhasse pra fora, claramente pra evitar que ela desmascarasse o disfarce de um pivete com um pedaço de madeira na mão. Esse desgraçado tá tentando me passar pra trás, pensou, convicta.

-Moça, eu to perdendo a paciência! Ou você me dá o dinheiro ou..
-Ou o quê? Vai atirar em mim com a tua arma imaginária? Atira espertão!
-Moça, você tá brincando com a sorte..
- Quem tá brincando aqui é você, seu maloqueiro de merda! Vai embora da minha casa! Era só o que me faltava mesmo..

O meliante esperou. Não estava entendendo o subito silêncio. O plano parecia perfeito.

-Moça? MOÇA! Mas que filha da..!

Ele ficou parado ali, com o revólver 38 encostado na janela. A voz fina não combinava com a estrutura física. Eram quase 2 metros de estrutura física. Olhou o tambor da arma. Uma única bala. Deu vontade de fazer a infeliz lá dentro engolir essa última bala. A desgraçada já tava até roncando! Mas não dava, precisava da grana. Colocou o revólver na cintura, pulou o muro e foi pra rua. Enquanto procurava outra casa, foi reclamando da sorte. "Eu até acertei que a vadia tava sozinha. A bolsa dela tava mesmo no quarto! Ah se eu tivesse mais uma bala. Umazinha só!"


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Como sempre



- Ei!

Ouviu o chamado assim que ia descer do ônibus, o qual o deixava a algumas quadras de casa após os dias de trabalho. Quem o chamava era aquela menina que estava no ônibus todos os dias. Aquela menina que ele procurava com os olhos ao passar pela catraca. Quer dizer, não se sabe bem se era uma menina ou moça, pois era difícil definir uma idade. "Algo entre 16 e 28", pensava, incerto e despretensioso.

Era a segunda vez em sua vida que havia ouvido sua voz. Da outra vez, ela estava conversando ao celular quando ele entrou no ônibus. O barulho do motor e das pancadas do veículo com o caminho esburacado impediram que ele pudesse entender o tom da conversa. Era uma voz normal, até um pouco grave. Com base nisso, tinha certeza de que ela era tímida e inteligente. Vai saber...

Ela, aliás, não era de uma beleza incontestável. Era daquelas que deixam os rapazes em dúvida. Ou não.

- Olha só estas curvas, meu Deus... mas, este nariz é meio macho, não?
- Fica quieto homem... uma dessas é pra casar! Até achar uma melhor e mais nova, claro.


Ele tinha curiosidade de saber se ela namorava. Sabia que ela usava uma aliança, mas, como não tinha a menor idéia de qual dedo de qual mão siginificaria "namoro", tinha esperanças.

Mas, na verdade, não pensava nela no passar dos dias. Apenas a partir do momento em que a procurava com os olhos ao pagar a passagem, até o instante de apertar o botão para pedir que o motorista o libertasse daquela coisa motorizada e barulhenta.


- Ô! Heein... - repetiu ela.

Depois de pensar em algumas centenas de hipóteses em menos de 4 segundos, virou-se e olhou para ela com firmeza, como ele fizera algumas vezes antes - claro, sem nunca ter sido percebido pela menina-moça.

Quando se deu conta da realidade, viu que ela olhava para a parte da frente do ônibus. Ficou estático. "Mas que diabos?"

- Motorista, me deixa na próxima esquina! - disse ela.
- Ô-hopa! - respondeu o motorista, numa mistura de simpatia com falta de vocabulário.

Nisto, a porta fechou e o veículo arrancou. Parou umas duas quadras para frente. Ele, ainda matutando, se deu conta de que havia sido iludido pela sua própria mente assim que a porta abriu novamente, e ouviu a voz dela pela terceira ou quarta vez na vida.

- Licença!

Ela desceu, e se foi para casa sem nem olhar para trás. Passo por passo, ele também desceu, e viu que o que havia de ser feito era ir para casa também.

Era apenas mais um dia normal.
A única diferença é que teria que andar mais algumas quadras. E que, enquanto caminhava, desabou o temporal mais forte dos últimos anos sobre a cidade.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Escribas


Todo personagem carrega os traços de personalidade de seu criador. Espasmos de criatividade que ganham vida. Trazem consigo as dores e os pensamentos e as vontades e sonhos e desejos de escritores solitários. Machado de Assis não era Bentinho, mas Bentinho definitivamente era Machado. A vida não nasce a partir do nada. Nasce a partir do tudo dentro do cérebro pulsante do escritor. A vida dada através de linhas e letras nada mais é do que uma parte do universo que reside dentro de todos nós. Do universo que somos todos nós.

Sherlock Holmes representa os sonhos de infância de Sir Arthur Conan Doyle. Arty, como era conhecido na escola, vivia tentando resolver mistérios insolúveis, através de métodos considerados sem nexo algum por seus pais. Frustrado na carreira de investigador, Arty teve que se contentar com os livros. Quem pode dizer que essa não é a verdade? Depois que todos os personagens reais das histórias não estão mais aqui, tudo vira estória.

Felizes são os poetas, que só precisam do coração e da alma para protagonizarem seus contos. E esses dois personagens são os melhores que alguém pode ter. Mário Quintana é um passarinho. Eles, passarão. Quem são eles? Eles que ninguém sabe de onde surgem, mas estão por toda parte? Outros personagens. Ocultos. Como oculta é grande parte do cérebro humano. Personagens obscuros mostram a obscuridade dentro de nós. Quem era Robert Louis Stevenson, o médico ou o monstro? Os dois, com certeza. Aqueles que são capazes de demonstrar traços tão distintos em seus personagens são os escritores mais brilhantes. E os seres humanos mais perturbados. Já seriam pelo simples fato de escreverem, aliás.

Dar a vida a alguém, que, no fundo, é apenas um outro eu do escritor - e do poeta, e do compositor - é deixar registrado no mundo um pouco de nós. É como se a vida que nós temos fosse morar em outros corpos, em outras mentes. Os personagens que criamos se tornam nosso único registro nesse mundo. Todos criam personagens. Alguns os mantém dentro de si. Outros, os deixam livres para que conquistem o mundo. Somos todos personagens de nós mesmos. No fim, a vida é um texto de Luis Fernando Verissimo.