quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Um bom dia

Acordou naquela manhã sentindo que aquele seria um bom dia. Nunca acordava bem-humorado, mas tinha alguma coisa diferente no ar naquela fria manhã de agosto. Olhou pra fora da casa, viu o imenso jardim e se sentiu ainda melhor. Pensou em acordar os pais e lhes dizer como a vida era bela e o quanto os amava, mas lembrou que morava sozinho. Aliás, lembrou que nunca conhecera os pais. Eles haviam o abandonado à própria sorte antes mesmo dele nascer. Fora largado pela mãe em uma fenda escura na parede de uma casa fria, longe das dezenas de irmãos que a vida, acolhedora e sábia, naturalmente lhe proporcionaria, tendo em vista as dificuldades de crescer sozinho nesse mundo, ainda mais sendo uma barata indefesa. A mãe, além de o largar desnaturadamente, o largou vários metros longe dos irmãos, por maldade ou acidente, nunca soube.

Quando tentou se aproximar de sua família renegada, vários dias depois de nascer, foi tratado com indiferença, como um estranho. Voltou então para o seu canto e foi tocando a vida. Sempre tivera a auto-estima baixa, pequena, tão pequena quanto os machos de sua espécie, muito menores do que as fêmeas, o que não ajudava muito no quesito respeito próprio. Além disso, tinha uma antena maior que a outra, o que não era, em absoluto, um sinal de beleza entre as baratas. Era uma barata solitária, como a maioria das baratas. Mas mesmo assim se sentia mais só do que os outros.

Sempre ouvia estórias pelos cantos que bradavam a sorte dos da sua espécie, herdeiros naturais desse mundo. Relatos heróicos de baratas que sobreviveram as mais variadas formas de destruição e catástrofe. Soube que teve um tio que sobrevivera ao tsunami devastador na Ásia anos antes, mas que morrera tragicamente vítima de uma cruel criança humana armada com uma raquete de tênis, semanas depois. Era de conhecimento geral que os humanos eram inimigos mortais das baratas, e que o melhor a fazer era manter a mais cautelosa distância deles, mas nenhum humano havia feito mal algum a ele, na sua opinião eram animais como todos os outros, perdidos no mundo e sem a menor idéia do que estavam fazendo aqui, como todos os outros. Gostava das estórias, mas não se sentia parte desse seleto grupo de seres-vivos sobreviventes e audases. Sentia-se deslocado.

Os dias passavam rapidamente, entre uma refeição e outra, uma olhadela na televisão e um atalho novo na parede para explorar. E aqui, onde se lê dias, a idéia de tempo deve ser adaptada a criaturas que tem por definição vidas que duram poucos meses. Enfim, os dias passavam, as fêmeas o desprezavam, e, devido a já comentada falta total de auto-estima, ele não fazia nenhum esforço para se aproximar delas. Quando por milagre sentira o cheiro dos feromônios do acasalamento exalados por uma fêmea desesperada uma semana atrás, se olhou no espelho por horas, ajeitando as antenas, disfarçando as pequenas asas e se achando esquisito demais para qualquer aproximação com fins reprodutivos. Perdeu a chance, talvez única em sua vida.

Mas aquele dia, por alguma razão desconhecida, seria um bom dia. Como todos os outros dias, acordou e foi em busca de água. Podia viver meses sem comida, mas nem dois dias sem água. Já estava nesse mundo havia pouco mais de 2 meses, já era um senhor de meia idade, sabia exatamente onde procurar água na casa, mas dessa vez quis fazer diferente. Quis sair para a rua. Saiu. Cantarolando baixinho e balançando as anteninhas disformes saiu pela porta. Chegou à calçada. Ah, o sol brilhando, o mundo girando. Que belo espetáculo. Não havia andado 10 metros quando fora pisoteado acidentalmente. Enquanto agonizava, ouviu o berro da sua desastrada algóz, que colocava a mão na boca, em um gesto de desgosto e asco. Ouviu um "Ai que nojo!" da transeunte que vinha logo atrás, antes de fechar os seus olhinhos de barata pela última vez. O sol continuou brilhando. O mundo, girando.

-Essa cidade tá cada vez mais suja hein? Cadê os garis? Foram matar a porcaria da barata bem na frente do meu salão!
- Calma minha senhora, tô chegando. Olha só, coitadinha, não teve nem chance..
- Coitadinha uma ova, tá espantando a clientela! Bixo asqueroso! Tira logo isso aí daí!
- Pronto, já tá no lixo. Tenha um bom dia viu moça!
- É, que seja..



sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

À felicidade


Felicidade não é sorrir. Não é estar em paz consigo mesmo, nem achar graça da vida. Não é estar com quem se gosta, ou fazer o que se gosta, quando se quer. Felicidade não é jogar futebol na areia da praia e depois ter um mar inteiro pra mergulhar e esquecer o cansaço. Não é ter uma rede pra deitar durante uma tarde preguiçosa. Felicidade não é gargalhar com os amigos até perder o fôlego. A felicidade é uma fotografia.

O tempo não para (/dias sim, dias não/eu vou sobrevivendo sem um arranhão). O tempo é uma força da natureza, um vendaval incessante que nos arrasta pela vida, um imenso vazio que corre pelas montanhas e pelos vales e... O tempo não para. A alegria que se sente no instante passa, ou aumenta, ou acaba no instante seguinte. A felicidade só existe depois. Logo depois ou dias depois, mas nunca no momento, no exato momento em que, de fato, acontece. A felicidade é uma lembrança.

No exato momento em que, de fato, acontece, a felicidade é uma mistura de preocupações, pensamentos e atitudes que nos fazem estar ali. Não dá pra parar e entender que se é feliz, então. Nós sempre somos felizes e não sabemos. Quase sempre. O tempo não para, mas às vezes dá um tempo pra nós. Como se dissesse “Vai cara, repara, esquece as preocupações e repara na mulher linda que ta segurando a tua mão” E nesses raros momentos, nós reparamos. Conseguir reparar que a felicidade esteve presente agora a pouco é o que torna alguém feliz de fato. Quanto mais rápido se faz isso, melhor. Quanto mais rápido vemos que estamos felizes, mais o tempo está do nosso lado.

As lembranças, por melhor que seja a memória, vão perdendo o sentido com o passar do tempo. As imagens permanecem, porém perdem o foco e a nitidez. Mas o pior é não se lembrar do sentimento. Não se lembrar do que aquele beijo te fez sentir é uma perda imensa e, infelizmente, inevitável. Ah, o tempo. Essa raposa sorrateira que espreita nos vales e nas montanhas e... O jeito é lembrar na hora. Aproveitar as brechas que o tempo dá e perceber a felicidade que está ali, alguns segundos atrás. Depois se espreguiçar, se ajeitar na rede e olhar o sol se escondendo no horizonte.