domingo, 25 de dezembro de 2011

morto-vivo

Era novo nesse negócio de estar morto. Ou achava que era, já que tinha perdido completamente a noção do tempo depois do tiro. Podia estar ali há milênios e não saberia direito. Mas achava que era novo. Um fato que reforçava esse sentimento era o dele não fazer ideia do que fazer. Já tinha entrado em algumas portas, chamado por Deus, até tentou meditar. Nada.

Não acreditava muito nessas coisas, mas por via das dúvidas se ajoelhou, fechou os olhos e tentou rezar. Quando espiou, viu um sujeito muito magro, vestido como se estivesse voltando das férias em alguma praia chinfrim parado em sua frente. Era bonito, mas não atraente. Tinha um rosto simétrico, se quem olhasse prestasse atenção, mas de uma forma que não chamava a atenção.

-Vai demorar muito pra levantar, amigo?
- Oi, eu..
- Eu sei. Você quer saber onde está, quem eu sou, onde está Deus, o sentido da vida, blá, blá, blá. Sério, mais de três milênios e vocês sempre têm as mesmas perguntas
- Desculpa, mas vocês não dão muitas pistas quando a gente tá lá, vivendo
- A vida é a grande pista, idiota

Então sumiu. De repente tudo em volta sumiu. Num clarão, o sujeito apareceu de volta, agora dentro de um terno preto. Estavam no local de sua morte. Viu todo o tiroteio novamente. Viu sua esposa desesperada, viu a sacola do mercado cheia de laranjas cair de suas mãos e as frutas rolando pela calçada, sem rumo. Não sentia nada, mas quis chorar. Não conseguiu. Perguntou para aquilo que agora achava ser um anjo porque estava ali.

- Primeiro, eu não sou anjo. Anjos não existem. Eu sei, é triste. Agora supere isso e preste atenção: você não está aqui. Você não está mais em lugar nenhum. Você é. Você é aqui. Você é tudo, faz parte de tudo.

- Mas tudo é muita coisa. Eu só queria ser eu, dá pra ser? Se a vida terminou desse jeito, sem sentido nenhum, minha morte pelo menos podia ser em paz

- Paz? Há! Amigo, eu não lembro quando foi a última vez que eu parei de trabalhar. Agora mesmo, eu tava descansando por um dia numa praiazinha chinfrim quando meu chefe me ligou dizendo que você precisava de ajuda. E o maldito deve ter feito a ligação da beira da piscina, com um suco de laranja na outra mão. Olha, eu já disse o que você precisava saber. Nós somos o que vocês costumam chamar de universo, embora você não vá entender isso agora.

E sumiu de volta. Dessa vez não voltou. O recém-morto não tinha entendido mesmo lá muita coisa, mas tinha a impressão de que não estava sozinho. Enquanto andava, olhou pra cima e achou o céu muito cinza. Tirou uma borracha do bolso, apagou algumas nuvens e pintou o sol com o amarelo mais bonito que tinha. Ficou melhor, disse pra si mesmo. As crianças que estavam sentadas no meio fio e saíram correndo para o parque concordaram.

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