Quando tentou se aproximar de sua família renegada, vários dias depois de nascer, foi tratado com indiferença, como um estranho. Voltou então para o seu canto e foi tocando a vida. Sempre tivera a auto-estima baixa, pequena, tão pequena quanto os machos de sua espécie, muito menores do que as fêmeas, o que não ajudava muito no quesito respeito próprio. Além disso, tinha uma antena maior que a outra, o que não era, em absoluto, um sinal de beleza entre as baratas. Era uma barata solitária, como a maioria das baratas. Mas mesmo assim se sentia mais só do que os outros.
Sempre ouvia estórias pelos cantos que bradavam a sorte dos da sua espécie, herdeiros naturais desse mundo. Relatos heróicos de baratas que sobreviveram as mais variadas formas de destruição e catástrofe. Soube que teve um tio que sobrevivera ao tsunami devastador na Ásia anos antes, mas que morrera tragicamente vítima de uma cruel criança humana armada com uma raquete de tênis, semanas depois. Era de conhecimento geral que os humanos eram inimigos mortais das baratas, e que o melhor a fazer era manter a mais cautelosa distância deles, mas nenhum humano havia feito mal algum a ele, na sua opinião eram animais como todos os outros, perdidos no mundo e sem a menor idéia do que estavam fazendo aqui, como todos os outros. Gostava das estórias, mas não se sentia parte desse seleto grupo de seres-vivos sobreviventes e audases. Sentia-se deslocado.
Os dias passavam rapidamente, entre uma refeição e outra, uma olhadela na televisão e um atalho novo na parede para explorar. E aqui, onde se lê dias, a idéia de tempo deve ser adaptada a criaturas que tem por definição vidas que duram poucos meses. Enfim, os dias passavam, as fêmeas o desprezavam, e, devido a já comentada falta total de auto-estima, ele não fazia nenhum esforço para se aproximar delas. Quando por milagre sentira o cheiro dos feromônios do acasalamento exalados por uma fêmea desesperada uma semana atrás, se olhou no espelho por horas, ajeitando as antenas, disfarçando as pequenas asas e se achando esquisito demais para qualquer aproximação com fins reprodutivos. Perdeu a chance, talvez única em sua vida.
Mas aquele dia, por alguma razão desconhecida, seria um bom dia. Como todos os outros dias, acordou e foi em busca de água. Podia viver meses sem comida, mas nem dois dias sem água. Já estava nesse mundo havia pouco mais de 2 meses, já era um senhor de meia idade, sabia exatamente onde procurar água na casa, mas dessa vez quis fazer diferente. Quis sair para a rua. Saiu. Cantarolando baixinho e balançando as anteninhas disformes saiu pela porta. Chegou à calçada. Ah, o sol brilhando, o mundo girando. Que belo espetáculo. Não havia andado 10 metros quando fora pisoteado acidentalmente. Enquanto agonizava, ouviu o berro da sua desastrada algóz, que colocava a mão na boca, em um gesto de desgosto e asco. Ouviu um "Ai que nojo!" da transeunte que vinha logo atrás, antes de fechar os seus olhinhos de barata pela última vez. O sol continuou brilhando. O mundo, girando.
-Essa cidade tá cada vez mais suja hein? Cadê os garis? Foram matar a porcaria da barata bem na frente do meu salão!
- Calma minha senhora, tô chegando. Olha só, coitadinha, não teve nem chance..
- Coitadinha uma ova, tá espantando a clientela! Bixo asqueroso! Tira logo isso aí daí!
- Pronto, já tá no lixo. Tenha um bom dia viu moça!
- É, que seja..
Um comentário:
hahahaha que viagem cara!
Ficou muito bom! Parabéns!
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